Acho que muita gente deve viver mais de uma vida. Não sei quão nocivo isso seja pra mente de alguém, nem se essas pessoas, como eu, admitem que não são o mesmo tipo de pessoas em todos os lugares. Mas falando por mim, não é nada, nada agradável.
Claro que ninguém gosta de admitir isso, mas a verdade é que nossa sociedade nos obriga a fazer isso. Há algumas semanas quando essa coisa da vida dupla começou a me incomodar de verdade eu fui a uma psicóloga. Disse a ela que me sentia dividido por que o trabalho que faço hoje não é o trabalho que quero fazer por toda a vida e que me dividir entre esse trabalho e a faculdade, ou seja, uma coisa que me machuca e outra que me agrada completamente, estava me deixando meio psico.
Eu sei que ela tinha a melhor das intenções, mas ela me disse tudo o que eu não queria ouvir. Ela veio com aquele papo de que os tempos mudaram, que o ser humano tem de se adaptar a essas mudanças rápidas e ser muito flexível. Como eu estava me sentindo muito mal, não consegui me expressar direito e acho que ela se sentiu um pouco ofendida com minha argumentação. Perguntei se essa “flexibilidade” não poderia ser confundida com hipocrisia. Afirmei categoricamente que se não, com certeza isso faria no mínimo um enorme estrago na alma. Quero dizer, tendo de mudar a cada dia para me adaptar às mudanças do ambiente, não irei c acordar uma bela manhã e não saber mais quem eu sou?
Ela, mesmo desconcertada pelo meu ataque disse que era perfeitamente possível ser esse camaleão sem se perder de si mesmo. Nós sabemos que isso não é verdade. Pelo menos não pra todas as pessoas. Não pra mim.
Não consigo dissociar essa visão de múltiplas vidas da interpretação que Stephen King fez do mito do Lobisomem em seu livro “Dança Macabra” (que não é um romance, mas uma análise do fenômeno do terror na cultura pop do século XX). Lá ele diz que o lobisomem representa o lado selvagem do homem normal e virtuoso. Esse lado reprimido nos calabouços obscuros da mente acaba um dia soltando suas amarras e vencendo a virtude, libertando-se faminto e furioso em busca de carne e vingança. Por isso não me lembro de nenhum momento de minha vida que tivesse sido tão “Jekill and Hyde” quanto este. E fico pensando no motivo pelo qual as pessoas (inclusive eu!) simplesmente aceitam essa condição.
Gostaria de acreditar que a boa psicóloga que visitei estivesse certa e, mesmo que eu fosse obrigado a ser uma pessoa durante o dia e outra de noite, pudesse sempre reconhecer meu verdadeiro eu. Talvez eu me sentisse mais seguro e confortável se eu tivesse certeza de que ela soubesse qual de seus inúmeros “eus” estava me atendendo naquele dia.