quinta-feira, 27 de setembro de 2012

LIZ DO PEITO




Hoje à tarde fui limpar o quarto para minha esposa e minha filha, que estão para chegar de viagem após dezoito dias. Ao espanar minha estante de livros, deixei cair algo, quando fui ver era a nota fiscal do único livro da Clarice Lispector que eu tenho, “Onde Estivestes de Noite”. Peguei o livro e comecei a passar as folhas. Comecei a lembrar de quando conheci Clarice.
No ano 2000 eu tinha 17 anos. Era meu último ano no colégio e, como muitos, eu era do tipo de adolescente que sabia que pertencia a qualquer lugar menos àquele. Os pensamentos eram confusos, minha referência de pai uma escalafobética turbulência afetiva ambulante e o mundo emocional que eu estava tentando administrar era reflexo de tudo isso. Apesar de viver numa família que nunca me deixou faltar o essencial, pouco sobrava para comprar as coisas que mais me divertiam naquele cenário: cd´s, livros e quadrinhos.
Desisti temporariamente dos quadrinhos, me virava com os cd´s emprestados dos amigos, mas era difícil encontrar quem tivesse gosto pela leitura. O jeito era juntar moedas e buscar uma fonte. Biblioteca do Sesc foi a salvação. Muita coisa diferente pra escolher, um mundo vasto. Lá eu conheci Clarice. A primeira coisa que eu li dela foi um livro chamado A Bela e a Fera. Foi minha primeira experiência com o que eu começaria a chamar de “livro de conflito”.
Acho que os leitores de Clarice devem concordar que o principal motivo de fascínio em sua escrita é mais o modo como ela dizia as coisas do que o próprio conteúdo. Lembro de como fiquei dias remoendo aqueles textos, impressionado por finalmente ler uma autora consagrada que não estava nem aí paras as convenções, que deixava o pensamento fluir sem amarras, quase como se eu estivesse lá em sua mente, ouvindo toda aquela enxurrada de pensamentos e ideias que se confundiam com a narrativa de algo, misturando história, devaneio, imagens.
Depois disso eu precisava continuar. Li “Água-viva”. Uma outra bomba no cérebro. Aquilo me fez querer escrever e, de fato, aquele foi um tempo em que escrevi muito, pois não tinha mais medo. Antes desse livro, eu tinha uma vontade genuína de dominar uma fórmula de escrever o que quer que fosse, e só então decidir o que escrever. Agora tudo virou de cabeça pra baixo. Era só um segundo encontro, mas você sabe como são os adolescentes. Um beijo, uma promessa e eis o amor de nossas vidas.
Por obra do destino, naquele ano o vestibular da UFC cobrou “Laços de Família” na lista de livros. Só li aquele. Juntei mais moedinhas e comprei “Onde estivestes de Noite”. Li de forma tão intensa, tão vivamente que não me continha apenas em passar os olhos sobre as frases, eu o rabiscava todo. Na orelha de trás escrevi: “Clarice,...” esperando um dia registrar na forma de carta tudo o que diria se pudesse fazê-la ler.

A nota fiscal...

Como não existiam lan-houses (ou talvez não eram tantas, a ponto de nunca ter ouvido falar em tal coisa), eu ia para o trabalho do meu pai e ficava horas pesquisando sobre ela. E foi por meio dessas pesquisas que descobri Virginia Woolf, que se tornou minha escritora preferida, desviando minha atenção da Clarice, expandindo ainda mais meu universo.
Esse meu namoro com ela foi muito rápido. Nossa separação foi muito típica dela, sem palavras, sem escândalos. Somente uma compreensão de certas inevitabilidades. Eu tinha amarras, ela me ensinou a ignorá-las. Clarice apareceu no meu mundo no momento em que qualquer radicalidade se tornaria uma epifania. Ela era radical em ser livre, dançando entre os fantasmas de dias comuns e vidas que colidiam perdidas numa existência arrastada. Tudo nela era sublime, como eu estava nela, eu me sublimei.

Minhas adições à obra de Clarice...(continua na próx. imagem.)

Eu sei quem é Clarice. Eu me deixei tocar. Talvez você também a conheça, mas eu não a conheço com o seu jeito. Tampouco você com o meu. A Clarice só era clara de uma forma, para cada um por quem ela passou, como um rio violento trazendo e levando a água viva do espírito.
Toda vez que vejo aquelas frases no Facebook atribuídas a ela, claro que sei que não é verdade e que logicamente partiu de alguém que queria tirar um sarro legal dos desavisados que porventura possam compartilhar. Eu endosso a brincadeira. Rio junto com o perpetrador. Até curto às vezes. Sinto-me no direito de celebrar minha capacidade de reconhecer o embuste, não por orgulho. Por qualquer outra coisa parecida cujo nome não me ocorre, mas que asseguro ser menos mesquinha.
Entre o momento em que tirei “Bela e a Fera” daquela estante até o momento em que digito esta singela crônica muita coisa aconteceu em minha vida.  Ainda não achei as palavras para colocar naquela carta, porque não quero errar ao dizer o quanto eu amo viver com a marca que ela deixou em mim. Eu não tenho mais o coração selvagem daquele adolescente. Eu escolho muito as palavras. E não há forma mais fácil de errar do que essa.