segunda-feira, 28 de março de 2011

O BARBEIRO E A PROSTITUTA ou A VOZ...



Corto o cabelo com o mesmo barbeiro há uns quinze anos. Sua barbearia é um monumento às figuras de todos os tons de obscuridade e humor que existem em Fortaleza. Não obstante o desfecho deste texto, ainda é por isso que vou lá uma vez por mês. Nunca conversei muito profundamente com ele. Não por timidez ou qualquer sentimento de desigualdade, mas por puro fascínio. O homem é conhecido por todos. Ladrões, trambiqueiros, camelôs, doutores, artistas, mendigos. Todas as criaturas que residem no Centro da cidade passam por lá para tomar seus conselhos, cobrar dinheiro, ou simplesmente vê-lo. Ele os recebe com toda a naturalidade de um irmão mais velho, um filho ou um pai.

Hoje estive lá e o encontrei sentado numa cadeira à porta da barbearia e o saudei com um aperto de mão. Enquanto cortava meu cabelo, comentava, como sempre, acerca de tudo o que se passava no local. Dava conselhos aos senhores que costumeiramente passam a tarde por lá lendo jornal para que deixem a bebida, contava sobre as inúmeras vezes em que esteve à beira da morte e dava receitas de bem viver às senhoras manicures que lá trabalham.


Lá pelas tantas, entra uma jovem trajando um shortinho que deixava o indecente envergonhado. Como sempre, permaneci de ouvidos atentos para entender a história que seria infalivelmente revelada por meio do diálogo dos dois. Meu caro amigo tentava ajudar a jovem prostituta a encontrar o cartório em que havia sido registrada para que regularizasse seus documentos de modo que pudesse viajar de volta à cidade do interior em que sua mãe mora, a pedido da própria. A garota dizia que gostava da vida que levava, pois junto da mãe teria de seguir regras. O Barbeiro, em sua exortação, convenceu a moça de que a vida da rua não tem futuro algum, que ela deveria aproveitar a ajuda da mãe e tentar construir algo, voltar a estudar, fazer cursos, trabalhar. E simples assim, com exposições claras, sucintas, mas num tom paternal hábil e resoluto, ausente na maioria dos pais de sangue, o homem dobrou a prostituta. Tão fácil quanto se induz alguém a fazer o que é errado, ele a persuadiu de que deveria tomar a decisão mais difícil e mais correta.

Eu costumava amar minha cidade. Ao final de minha adolescência tive um arroubo de estranha esperança nela e no povo. Não entendo, ao passar em retrospecto  minhas sensações , de onde vinha tal esperança. A resposta mais próxima a que consegui chegar foi que nessa época eu estava tão concentrado na busca de um tipo específico de vivência que não notava o contexto em que estava inserido. Eu fazia parte da paisagem da cidade, assim como os meus amigos que visitam o nosso herói. E com eles, mimetizado no mosaico de vidas que circulavam amiúde pelas ruas, eu ficava completamente satisfeito em ser parte de um organismo vivo e pulsante, uma célula num corpo em crescimento desgovernado, mas saudável. Eu era muito feliz enquanto não sabia que de saudável, a cidade não tinha (nem tem) nada.



Esta cidade tem se tornado o cú infecto de uma política burlesca e as únicas e bizarras alternativas que existem para ela é limpá-lo definitivamente ou arrombá-lo com violência. Gosto de acreditar que, se sobrevivermos à hecatombe, será por artes de vozes como a do meu oráculo. Vozes que ecoam uma natureza íntima, quase invisível, de bondade. Vozes que emulam em obstinação com a decrepitude do descaso.