segunda-feira, 27 de maio de 2013

EU, VIRGINIA E O FITOPLÂNCTON

Namib Dessert

Eu desço do ônibus, quase em frente ao trabalho. Não quero mesmo ir pra lá. Quero ir pra qualquer lugar menos pra lá. Quero pelo menos um minuto em que não me sinta um cachorro correndo atrás do próprio rabo.
Na praça, um senhor de macacão descansa deitado em um dos bancos como se estivesse deitado numa rede entre palmeiras em sua ilha particular nas Bahamas. Que poder! Que grande poder esse de ignorar a realidade! Vou aproveitar a deixa e fingir um pouco também...
Sento ali perto, abro meu livro e continuo a leitura que comecei há dias. As palavras são uma delícia do espírito. Elas me invadem e me carregam ao mesmo tempo. Apagam tudo ao redor, arrancam o chão dos meus pés.
Meu celular toca. Alguém qualquer que acha ter algum direito sobre minha mente e que insiste em não ser ignorado, alguns chamam esses caras de...chefe. Nós sonhadores possuímos tais nêmeses. Insisto em ignorá-lo. Mas ele já quebrou o momento. Olho o dono da ilha nas Bahamas esparramado no banco à frente. Ele baba, ronca e sorri. Ali mesmo, na praça. “Céus”, penso eu, “como ele consegue?! ”
Olho para o livro. De repente as palavras perderam toda a magia. Que enorme desejo do ócio. Que vontade de queimar todo o dinheiro do mundo até que sobre apenas as cinzas da necessidade!
Suspiro, balanço a cabeça inconsolável e olho para baixo. E o piso da praça me arremessa em minha infância. São placas de rocha sedimentar daquelas que usam em piscinas. Conheço-as muito bem. Eu queria ser paleontólogo quando pequeno. Sabia tudo sobre dinossauros, eras geológicas, evolução. Um dia achei o fóssil de um peixe na borda de uma piscina num clube. Passei a manhã inteira deitado perto dele, olhando profundamente, imaginando-o a nadar milhões de anos antes de eu existir num mundo completamente diferente onde só meu pensamento tem permissão de visitar.
Para um olho desatento as placas da praça não têm nada de especial. Mas também há fósseis ali. Não de peixes, muito menos dinossauros. Pequenos grãos bacilares salpicam a rocha. São algas pré-históricas. Fitoplânctons.  Seres incríveis que encheram a Terra de oxigênio. O que estou vendo é uma fotografia do passado. Onde as pessoas pisam distraídas todos os dias. E estou dentro de uma lagoa no Araripe há 130 milhões de anos. Nado e vejo essas algas flutuando enquanto os Kellnerius e os Planohybodus lutam pela sobrevivência. Vejo as sombras dos Anhangueras batendo as imensas asas rentes à superfície à caça de Rhincolepis que saltem da água.
Mas volto. Veículos, pessoas indo e vindo. Meu colega da ilha ainda ressona. Percebo ao meu lado uma senhora de enormes olhos fantasmagóricos. Ela sorri com o canto dos lábios. “Boa tarde, meu jovem”, saúda ela.
Entro em êxtase.
“Não precisa dizer nada”, ela continua com uma voz calma e marcada como uma música marcial. “Você sabe quem eu sou. A Senhora do Rio e da Montanha. E tenho uma ordem. O Rio é um símbolo. E a Montanha é seu símbolo. Emerja do Rio e siga para a Montanha. Onde é pacífico, silencioso e você vê tudo de cima.”
Ela levanta e caminha para longe. Evanesce descendo solo abaixo, como se adentrasse o leito de um riacho com os bolsos cheios de pedras. Encosto-me no banco e suspiro mais uma vez. Meu amigo acorda e se espreguiça. É hora de voltar ao trabalho. Fecho meu livro, observo o título e a foto da  capa. “Jacob´s Room- Virginia Woolf”. E lá está ela, a senhora de olhos fantasmagóricos.
Porque há dias em que os mortos precisam nos avisar daquilo que esquecemos.



segunda-feira, 20 de maio de 2013

OS ESCRITOS PERDIDOS (final) - por Caminhos Misteriosos

By Edward Gorey

"Ela é a onda, Ela muda a maré,
Ela vê o homem dentro da criança."
(SHE MOVES IN MYSTERIOUS WAYS - U2)


Aquele que rege o jogo tem um formidável senso de humor.
Ele mexe as peças e escarnece um pouco de nós quando olhamos nos olhos daquela pessoa logo após ela nos adivinhar o pensamento. Parece até mentira o modo como certas linhas, por mais tortuosas que sejam, conseguem parar nos lábios, palavras e ações de outra pessoa segundos antes da gente poder articulá-las. E milhares daquelas linhas corriam paralelas às minhas em perfeita sincronia, como se fossem de uma mesma pessoa.
Os anos se sucedem, as razões se atropelam. Sentimentos são cultivados e crescem como pequenos e adoráveis monstros que se brinca e quer jogar fora quando começam a ficar grandes e perigosos. Alguns você simplesmente consegue jogar na privada e dar a descarga, como as velhas lendas de crocodilos nos esgotos. No meio da noite quase se pode ouvi-los rosnando em algum lugar abaixo de nossos pés. Mas é necessário atenção. Muitos deles crescem a ponto de não descerem mais. E ficam. Outros retornam das profundezas e te devoram. Disfarce-os, chame-os de lições, esconda-os. Se tudo o mais der errado, escreva.
A gente cruza com alguém na rua e algo em seu olhar a denuncia. Um sorriso, um meneio, qualquer gesto nos diz que as coisas que ela esconde são irmãs das nossas. As pessoas se entendem através do que escondem. As conversas mais sublimes são lembradas pelo que não se diz. E, que droga, é possível que muita gente esteja pensando agora mesmo que aquela conversa nunca mais se repetiu. Que precisa sentir aquilo de novo. Porque tudo isso é muito raro. Os pequenos e mortificantes momentos de beleza que envolvem o contato verdadeiro entre duas pessoas. A beleza nisso é rara, rápida e quase inacreditável.
Eu também sou uma sombra toda feita de palavras. Um construtor de ironias. Alimento e aqueço entidades. Elas estão em lugares distantes abrindo brechas para o acaso. Como o Acendedor de Lampiões, mantenho para elas e outras a missão de não deixar a tênue luz do Sonho se apagar.
E Destino, o mais velho dos Eternos, continua lendo as páginas mais interessantes de seu livro misterioso. Desespero e Desejo estão por perto, mas mesmo assim, prefiro acreditar no que Delírio diz sobre isso...
Mas aqui estamos, você em seu esconderijo, eu com meus disfarces de névoa. Do nosso jeito, conspiramos o caminho dos fatos. Uma vez vítimas, outra vez algozes. Sempre vivos.
Igrejas, mesquitas, pirâmides. Que importa onde as Almas se cruzam?
 Que as pessoas se encontrem. Que criem belos segredos. Que moldem seus sonhos e os deixem invadir a realidade dos outros. Que haja anarquia nas proximidades da fronteira entre devaneio e verdade. No meio do combate, nossas palavras se chocam e faíscam como as espadas dos guerreiros. Somos os guardiões oníricos de uma astúcia esquecida.
As vidas que criamos são o sustentáculo da história. Sorria, Madame. Sorria.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

OS ESCRITOS PERDIDOS (parte 2 de 3)

By Edward Gorey


"Dia 22 de novembro - 2001

Ontem R.(*) veio me ver de novo. Foi difícil pra caramba encará-lo depois de tudo. O tempo, todo mundo diz, cura qualquer ferida. Mas parece que algumas feridas só aumentam com o tempo. Mas, sei lá. Ontem ele estava feliz, parecia mais leve. Tentou não falar de passado. Ficou meio [indecifrável]. Acho que ele só queria me ver de novo. Nossa, se ele soubesse o quanto eu também precisava vê-lo. Eu sei que é egoísmo, acho que é coisa de mulher. Quando estou no pior momento é só nele que eu penso. Pra ele eu sou tão especial quanto jamais me achei. E por quê? Tenho me perguntado isso ao longo dos últimos quatro anos e a única resposta que tenho é que eu acho que ele enxerga em mim uma coisa maravilhosa que nem mesmo eu consigo enxergar. Bom menino. Desta vez ele saiu sem me beijar. Passou [indecifrável] tempo. Será que se apaixonou por outra? Se isso aconteceu, o que será de mim? E se isso não aconteceu, o que será dele?

Assim que ele saiu fui até as coisas bobinhas que eu escrevia no colégio. Tava tudo rasgado e empoeirado, uma bagunça. Um dia vou ter minha casa e toda a joça que eu escrevo vai ter um lugar. Peguei um bloquinho de 98. Minha letra era muito pior que hoje (risos). Mas [indecifrável]. De repente tive um tipo de pequena iluminação legal sobre ele lendo essa coisa que foi uma das poucas realmente maduras. Percebi que ele é a única pessoa que me faz ser melhor, escrever melhor, pensar com mais calma. Foi logo que ele me mandou a primeira carta depois de me dizer que me amava. Como todo o caderno estava bem ferrado, resolvi arrancar o trecho e colar aqui:

[trecho escrito no papel anexo]

Não consigo acreditar nisso. Nunca pensei sequer em ser amigo dele. Nunca pensei em ter alguém como ele na minha vida. O que vou fazer, meu Deus? O menino abriu o coração pra mim. E meus problemas são tão diferentes dos dele! Calma Suzete, calma. Você vai só parar e respirar e vai escrever de volta. Deixa a coisa fluir e de repente você vai dizer o que é necessário. Ele escreveu aquilo com o coração. Merece uma resposta de coração.  As linhas escritas com o coração são um caminho para ele. A coisa mais adorável a se fazer em qualquer momento é seguir o rastro deixado por elas. Só fique fria, tá bem?

[fim do trecho]

Muita coisa aconteceu na minha vida e na dele. Ele nunca mais foi o mesmo depois daqueles tiros. Foi tudo muito complicado e pra variar eu não estava lá, mas sim preocupada com meus problemas. Que droga. Eu sou tão idiota. Porque hoje eu queria. Queria que ele tivesse me beijado. Por que diabos ele me respeita tanto? R., seu besta. Não tem um jeito dele perceber que eu não mereço a redoma perfeita que ele construiu pra mim. Acho que ninguém mais vai me amar como ele me ama."



Por motivos muitíssimos pessoais escolhi reproduzir aqui uma das página-diário da Senhorita Suzie Mendes. Para minha sorte a que eu precisava tomar a liberdade de expor era justamente uma das menos comprometedoras e só precisei suprimir um nome (marcado com  *).


segunda-feira, 6 de maio de 2013

OS ESCRITOS PERDIDOS (parte 1 de 3)

By Edward Gorey

Nos idos de 2003, 2004 eu fazia um fanzine maluco chamado Plano 9 com meu amigo Cabelo. Vendíamos por R$ 0,50 lá pelas bandas do Benfica e aquilo foi a única coisa na vida que eu já tive a coragem e o prazer de vender. Detesto vendas, eu não conseguiria vender um copo d’água para alguém perdido num deserto. Mas o fato é que andávamos muito por aí atrás de tirar cópias desse fanzine e numa dessas andanças eu tive a sorte de topar com um extraordinário tesouro.
Haveria um ZINE-SE (tradicional encontro de fazedores de fanzines) no Centro de Humanas da UECE. Combinamos de juntar uma grana para vender lá todos os números que havíamos produzido até então, mais um que estávamos produzindo naquele momento. Só que não tínhamos nem metade dos textos produzidos, então foi uma correria desgraçada para aprontar tudo até aquela noite. Telefonamo-nos à tarde e combinamos de nos encontrar em um lugar qualquer do Centro do qual não me recordo agora.
Eu estava mal com o pessoal lá de casa (pra variar...) e não tinha nenhum puto além do dinheiro das cópias. Por isso, tive de ir a pé (pra variar de novo...). Sempre que estou de cabeça cheia procuro ir pra um lugar onde eu possa ficar completamente quieto, sem pensar em nada, só respirando, pelo menos por uns minutinhos. Quase sempre esse lugar é a Igreja de São Benedito, na Rua Bárbara de Alencar, um hábito que minha grande amiga Sue também compartilha e que mesmo com quase vinte anos de amizade só descobri agora, mas enfim...
Pois nesse dia, em meio a toda a pressa em que eu estava, desviei o caminho para meu esconderijo e sentei lá, no silêncio gostoso do lugar e tentei me esvaziar para poder seguir. Baixei minha cabeça e fiquei assim por uns quinze minutos. Quando senti que poderia continuar o dia sem precisar matar ninguém, levantei a cabeça e peguei minhas coisas. Foi quando avistei um embrulho no chão da igreja, embaixo de um acento a uns três metros de mim. Olhei para um lado e outro e não havia absolutamente ninguém por perto. Fui até lá e peguei o embrulho. Saquei imediatamente que se tratava de um caderno. Estava enrolado cuidadosamente em um tecido xadrez. Deu a maior vontade de abrir logo, mas fiquei com medo do dono chegar de repente e pensar que eu estava roubando. Resolvi procurar alguém da paróquia e deixar o pacote sob seus cuidados para poder ir embora. Rodei o lugar inteiro, mas não encontrei ninguém mesmo, parecia um episódio de Além da Imaginação em que todas as pessoas da Terra somem. Como eu já estava apressado sentei novamente e desembrulhei a coisa. Em parte para encontrar um nome ou telefone pra que pudesse devolvê-la, em parte porque sou mesmo muito xereta e não estava mais me aguentando pra saber o que era aquilo.
Tive dificuldade para desamarrar o barbante, puxei o estilete com o qual cortava os zines e taquei nos nós. Quando desembrulhei o caderno, um bilhete caiu no meu colo. Peguei para ler e o que tinha escrito logo no envelope me fez ter vontade de agarrar tudo aquilo e sair correndo em vez de tentar devolver ao verdadeiro dono. Era uma citação da música “Nowhere Fast” dos Smiths.


Reconheci de cara porque amo Smiths de uma forma que prefiro nem comentar. E sabe o que eu fiz? Eu agarrei os cadernos e literalmente saí correndo dali. Fiquei bem caladinho, não comentei com ninguém. Fui fazer o que tinha de fazer eufórico, louco pra chegar em casa e explorar meu achado. Participamos do ZINE-SE, vendemos tudo e quando terminou eu tinha dinheiro para pegar o ônibus. Quando cheguei em casa me internei no quarto para ler. Aquilo mudou MUITA coisa...
Era um caderno daqueles grossos, com a capa coberta com jornal (que me inspirou a fazer o mesmo com o diário que eu mesmo escrevia na época). Estava todo escrito da primeira à última página com uma letra quase ilegível, como se a pessoa não tivesse a menor intenção de se fazer entender, como se escrevesse para si mesma e só. Era possível apenas inferir que se tratava também de um diário, mas não apenas isso. Era um compêndio de textos escritos com incrível avidez ao longo de um ano e meio (setembro de 2000 a março de 2002) e ali estavam contos, poemas, partes de roteiros, letras de músicas conhecidas e outras que até hoje me parecem de autoria própria. Grande parte daquilo eu nunca consegui decifrar. Mas o bilhete deixado estava mais ou menos legível, como meus caríssimos poderão averiguar logo abaixo.


Uma ajudinha para quem não consegui ler:

A quem encontrar...
Talvez um dia, quando este mundo tiver um pouco mais de brilho, você possa me devolver meus escritos para que eu me lembre de quem fui. Porque ninguém que eu conheço jamais me verá de novo ou ouvirá falar de mim. Essas são as únicas lembranças de quem fui.  Este é meu único legado. Não estou morta. Não da maneira conhecida por todos. Mas peço que seu coração seja capaz de proteger este pequeno pedaço de vida.
Suzie Mendes"

Não fui procurar a pessoa em questão, pois me pareceu bem claro que ela não queria ser encontrada. Imaginei mil coisas, que ela fugiu, desapareceu, se suicidou. Pensei em ligar para a polícia, mas algo me dizia que não era a coisa certa a fazer. Que o certo seria cumprir minha pequena missão e guardar com meu coração o meu tesouro, achando que o acaso me levara até ele.
Mas parece que não...
Ao longo desses quase dez anos algumas coisas misteriosas aconteceram. Mas duas em especial me deixam grilado até hoje. Um dia, poucos meses depois de encontrar o caderno, sentei numa cabine individual da Biblioteca Pública Menezes Pimentel e encontrei um trecho de um verso de poema dela escrito a lápis: “Oh, Lenora, Lenora! Teu nome é uma mentira.” Embaixo, uma data e um horário. Daquele mesmo dia. Vinte minutos antes de eu chegar.
Fiquei com o coração na boca. Achei que talvez ela estivesse por ali, então fui até a recepção e perguntei ao guarda se ele viu quem estava naquela mesma cabine antes de mim e ele respondeu que não. Fui às cabines vizinhas e perguntei às pessoas se viram alguém por ali, responderam o mesmo. Aquilo me tirou a concentração para o estudo. Então decidi ir pra casa e voltar depois com uma câmera para registrar o escrito, mas quando voltei só encontrei um borrão na parede. Alguém apagara o verso.
A outra foi um conto em um fanzine literário de uma moça que publicava textos de diversos colaboradores que eu lia assiduamente. Lá estava o nome da criatura, mas apenas guardei o exemplar, sem ir atrás de saber a origem do texto. Só que alguém que não posso revelar o nome, tempos depois, disse que viu o envelope no qual o conto chegou e reconheceu meu endereço. Lógico que não falei nada pra essa pessoa sobre o que eu sabia, apenas a deixei pensar que eu enviara o conto com um pseudônimo e recebi o elogio.
Nem sei por que resolvi contar isso agora. Não conheço Suzie Mendes além do que ela mostrou em seus textos. Não tenho nada além deles a não ser um nome e todos os sentimentos bons, ruins, místicos e frenéticos que alguém quis escrever para si mesma e então atirar assim no mundo.
Algo me faz desconfiar que de que fui escolhido para encontrar os escritos. Eu poderia estar com medo de algo, talvez pela gigantesca estranheza de tudo isso. Acho tenho sim, um pouco de medo. Mas uma força maior que esse medo me move aqui: minha curiosidade patológica. Senhorita Mendes escolheu a pessoa certa...
Se você estiver lendo isto, Suzie, peço perdão. Chegou o momento de dividir um pouco desse tesouro. Mas é claro que você sabia que um dia isso iria acontecer.



[continua no próximo post...]