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Namib Dessert |
Eu
desço do ônibus, quase em frente ao trabalho. Não quero mesmo ir pra lá. Quero
ir pra qualquer lugar menos pra lá. Quero pelo menos um minuto em que não me
sinta um cachorro correndo atrás do próprio rabo.
Na
praça, um senhor de macacão descansa deitado em um dos bancos como se estivesse
deitado numa rede entre palmeiras em sua ilha particular nas Bahamas. Que
poder! Que grande poder esse de ignorar a realidade! Vou aproveitar a deixa e
fingir um pouco também...
Sento
ali perto, abro meu livro e continuo a leitura que comecei há dias. As palavras
são uma delícia do espírito. Elas me invadem e me carregam ao mesmo tempo.
Apagam tudo ao redor, arrancam o chão dos meus pés.
Meu
celular toca. Alguém qualquer que acha ter algum direito sobre minha mente e
que insiste em não ser ignorado, alguns chamam esses caras de...chefe. Nós
sonhadores possuímos tais nêmeses. Insisto em ignorá-lo. Mas ele já quebrou o
momento. Olho o dono da ilha nas Bahamas esparramado no banco à frente. Ele
baba, ronca e sorri. Ali mesmo, na praça. “Céus”, penso eu, “como ele
consegue?! ”
Olho
para o livro. De repente as palavras perderam toda a magia. Que enorme desejo
do ócio. Que vontade de queimar todo o dinheiro do mundo até que sobre apenas
as cinzas da necessidade!
Suspiro,
balanço a cabeça inconsolável e olho para baixo. E o piso da praça me arremessa
em minha infância. São placas de rocha sedimentar daquelas que usam em
piscinas. Conheço-as muito bem. Eu queria ser paleontólogo quando pequeno.
Sabia tudo sobre dinossauros, eras geológicas, evolução. Um dia achei o fóssil
de um peixe na borda de uma piscina num clube. Passei a manhã inteira deitado
perto dele, olhando profundamente, imaginando-o a nadar milhões de anos antes
de eu existir num mundo completamente diferente onde só meu pensamento tem
permissão de visitar.
Para
um olho desatento as placas da praça não têm nada de especial. Mas também há
fósseis ali. Não de peixes, muito menos dinossauros. Pequenos grãos bacilares
salpicam a rocha. São algas pré-históricas. Fitoplânctons. Seres incríveis que encheram a Terra de
oxigênio. O que estou vendo é uma fotografia do passado. Onde as pessoas pisam distraídas
todos os dias. E estou dentro de uma lagoa no Araripe há 130 milhões de anos. Nado
e vejo essas algas flutuando enquanto os Kellnerius
e os Planohybodus lutam pela
sobrevivência. Vejo as sombras dos Anhangueras
batendo as imensas asas rentes à superfície à caça de Rhincolepis que saltem da água.
Mas
volto. Veículos, pessoas indo e vindo. Meu colega da ilha ainda ressona.
Percebo ao meu lado uma senhora de enormes olhos fantasmagóricos. Ela sorri com
o canto dos lábios. “Boa tarde, meu jovem”, saúda ela.
Entro
em êxtase.
“Não
precisa dizer nada”, ela continua com uma voz calma e marcada como uma música
marcial. “Você sabe quem eu sou. A Senhora do Rio e da Montanha. E tenho uma
ordem. O Rio é um símbolo. E a Montanha é seu símbolo. Emerja do Rio e siga
para a Montanha. Onde é pacífico, silencioso e você vê tudo de cima.”
Ela
levanta e caminha para longe. Evanesce descendo solo abaixo, como se adentrasse
o leito de um riacho com os bolsos cheios de pedras. Encosto-me no banco e
suspiro mais uma vez. Meu amigo acorda e se espreguiça. É hora de voltar ao
trabalho. Fecho meu livro, observo o título e a foto da capa. “Jacob´s Room- Virginia Woolf”. E lá
está ela, a senhora de olhos fantasmagóricos.
Porque
há dias em que os mortos precisam nos avisar daquilo que esquecemos.
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