terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

HÁ UMA LUZ QUE NÃO SE APAGA

Desenho de Daniel Johnston
A pior coisa que fizeram comigo foi me ensinarem que podemos sonhar com algo. Não sei bem quem foi, nem quando. Na verdade, acredito que não foi uma pessoa só que fez isso, mas um conjunto de outros sonhadores. Frustrados ou bem sucedidos, próximos ou distantes, célebres ou anônimos, essas pessoas me fizeram ver que existem coisas magníficas que podemos imaginar, que estão além de nosso alcance agora, mas que podemos sacrificar algo pra torná-las reais. Quando isso acontece, aí nos tornamos como que lendas, modelos para novos sonhadores. E no fim da jornada, o que sobra é um mundo melhor.

Por que acho que foi uma coisa ruim me fazerem enxergar as possibilidades por trás de um sonho? Por que nesse mundo os sonhos custam muito, muito caro. Como eu disse, é uma jornada. E muito dura. E as vezes parece mais fácil pras pessoas não ligar pra esse tipo de coisa e colocar tudo em termos materiais, “um sonho de consumo”, por exemplo.

As pessoas inspiradoras só me falaram da parte boa do sonho e deixaram tudo o que é realmente importante saber sobre eles subentendido. Você junta suas coisas e já está quase com o pé na estrada para ir em busca de sua mais alta aspiração e aí leva o primeiro tiro. Tenta se levantar e leva outro. Consegue se levantar e assim vai, levando um golpe mais doloroso e complicado que o outro e olha pra si mesmo em vários momentos da caminhada sempre percebendo que está muito longe da metade.

Não sei se meus sonhos, sim pois são muitos, são mais difíceis que os das outras pessoas. Na maior parte do tempo, tenho a impressão de que a grande multidão nem sabe do que se trata isso. Minha mãe passou toda sua vida dentro de uma cozinha servindo de escrava pro sacana do meu pai, que a abandonou há pouco mais de dois anos em profundo agradecimento por tudo o que ela sacrificou, por todo o tempo que gastou Ra que ele tivesse seu jantar na cama onde passava mais da metade do seu tempo peidando e assistindo futebol. É difícil imaginar que alguém cresça querendo esse destino para si.

O próprio velho sacana, se formos extremamente empáticos para vermos sua vida com um pouco de sentimento humano, não deve ter sonhado quando menino gastar todo tempo de seus muitos dias de folga deitado feito um sapo obeso assistindo futebol. No mínimo, ele deve ter sonhado em ser jogador. Isso eu nunca soube, pois ele jamais me deixava terminar uma conversa sem me irritar completamente.

E assim é. Se andamos de ônibus e olhamos as pessoas, podemos encontrar um monte delas nas quais paramos o nosso olhar e pensamos: “Então é isso que ela quis pra si?” Sabe, aquela velha história da vidinha medíocre. Acordar, ir pro trabalho, chegar cansado, assistir porcarias na TV, dormir pra acordar no outro dia e repetir a mesma coisa infinitamente até uma doença fodida lhe derrubar de vez numa cama de hospital onde crescerão escaras nas suas costas e as pessoas terão de limpar a merda do seu rabo até você finalmente se tocar de que já morreu e finalmente desocupar a vaga do leito pra que outro morto-vivo ocupe seu lugar. Isso tudo passou na sua cabeça enquanto você olhava o senhor de meia idade no ônibus a caminho de casa. Mas nem percebeu que ele deu uma olhadinha em você minutos atrás e pensou talvez exatamente a mesmíssima coisa. Rsrsrsrs.

Isso é bem possível. Dizem que todo mundo vê a vida como um filme no qual a própria pessoa se acha o protagonista. Posso falar por mim, isso é bem verdade. Se todo mundo tem mais ou menos o mesmo tipo de raciocínio que eu sobre o tempo que foge das mãos levando embora nossas oportunidades de tornar esse filme a coisa mais empolgante do universo, então isso quer dizer que, mesmo já tendo desistido do seu sonho sem se dar conta disso, as pessoas ainda guardam uma esperança deque algo estupendo de repente aconteça e mude completamente a sorte do mocinho. A diferença entre as nossas lendas inspiradoras e a multidão de luzes evanescentes que vêm e vão às sete da manhã e às seis da noite é que os primeiros não mediram conseqüências. Eles sabem exatamente o que sabemos, têm mãos, braços e pernas tão fracos quanto os nossos e são tão inseguros quanto. A única coisa que eles têm e nós não é coragem.

Existem muitos preços a se pagar por um sonho (ou pelo direito de realizar todos). Pra cada um é necessário uma carga enorme de coragem que a maioria das pessoas não tem ou não sabe que têm. Passando em revista minha vida, percebo que sou capaz de pagar todos eles, exceto um: machucar as pessoas que amo. O problema é que essa é a prova de fogo. Se você não é capaz disso, então você está bem ferrado. Esse preço aparece duas vezes na jornada em busca do sonho. E justamente nos dois momentos mais críticos. O primeiro momento é no começo. O segundo é no final. Não importa, cada sonho que tive e deixei de lado (alguns, como o de ser paleontólogo, são irrecuperáveis) teve como único empecilho o meu medo de machucar quem eu amo. As pessoas não entendem que não as deixamos de amar só porque nos amamos antes de qualquer coisa e isso é meio que um labirinto difícil de sair.

Porra, eu tenho muitos sonhos. Não acho que eles sejam muito difíceis de se realizar. Não mesmo. O problema é que estou ligado a pessoas que não admitem de maneira alguma que alguém possa sonhar algo como o que eu quero pra mim. Não há como me desvencilhar desse obstáculo, pois eu agüento tudo, menos que alguém que eu realmente amo pense que não me importo.

E assim, cada um de nós, pessoas não legendárias que caminham pela cidade, têm seus motivos para não se realizarem. Há uma verdade nisso tudo que diz que uma pessoa jamais se sentirá realizada plenamente. É claro que não, isso é a melhor coisa, pois se uma pessoa se sentisse plena em realizar seu sonho, que motivo haveria pra viver depois de tê-lo feito?

Não ponho a culpa das pessoas serem medrosas no Sistema. Acho que o Sistema é apenas a desculpa que as pessoas arrumam para justificar seu medo de romper com suas limitações e se tornarem seres humanos plenos. Mais do que isso, acho que o surgimento do Sistema é uma conseqüência desse medo. Vivemos em um mundo que escraviza as pessoas através do trabalho e da alienação social, política e religiosa porque ao longo do tempo o Homem foi ficando cada vez menos autoconfiante, carente e necessitado de abrigo. Isso foi abrindo caminho pra que alguns gananciosos se alastrassem pela sociedade estruturando-a dessa forma ao alimentar a necessidade de conforto da grande massa.

No fim das contas nós apenas trabalhamos a vida inteira pra nos equipararmos a eles inutilmente se nos dermos conta ou mesmo aceitarmos que apenas um formidável golpe de sorte poderá nos fazer ascender ao status no qual se encontram os poderosos. Esta sociedade é tão socialmente estagnada quanto na Idade Média. Nasceu camponês, vai morrer camponês. Nasceu suserano, vai morrer suserano. Se você trabalhar muito, mas muito mesmo a ponto de não ter uma vida intelectual plena e não poder cultivar seu próprio espírito, pode ser que você consiga dinheiro suficiente pra ser considerado um camponês parecido com suserano. Mas a parte isso, só o bom e velho golpe de sorte. E essa é a corrida que todos nós aceitamos disputar. Passivamente, é claro.

Sempre digo para os meus alunos que quando você não faz suas próprias escolhas, alguém as faz por você. É mais ou menos como se você estivesse de olhos vendados andando em direção a um abismo. Se você não escolher uma direção, seja ela qual for o único caminho possível é o da queda. E o pior é que sempre tem alguém esperando a gente chegar bem pertinho pra nos dar um belo chute na bunda e nos ver despencar lá de cima. Não dá mesmo pra ficar esperando a iluminação chegar para termos a certeza do que devemos fazer da nossa vida. Tudo pode acontecer. Pode ser que simplesmente escolhamos nos satisfazer a todo custo, machucando aqueles que amamos, fazendo o maior escarcéu da paróquia e no final descobrirmos que aquilo pelo que lutamos sacrificando todo o chão sob nossos pés era uma enganação total. E pode ser que simplesmente nos consolemos com nossa vidinha em prol da paz de espírito de nossas mães, esposas, filhos e no final morrermos sozinhos numa porcaria de vala para indigentes no Cemitério São João Batista.

Como todos esses tipos que eu citei, eu também tenho a esperança de que possa realizar meus sonhos um dia. Meus sonhos não são daquele tio de sonho fechado. Não são uma coisa que eu quero conseguir, são mais um estado, um nível espiritual, uma forma de ser. Todos os dias a história de toda a minha vida se repete, desde o dia em que nasci, há trinta anos até o dia da minha morte, sabe lá deus quando. Em alguns dias, meus sonhos se desfazem e eu sou enterrado na vala como. Em outros eu consigo uma força sem nome que me dá o poder de subverter todas as adversidades, a ponto de me tornar um ser superior, capaz de controlar todas as nuances traiçoeiras do destino. Nesses dias eu não só me torno uma lenda, mas trago comigo milhares de pessoas e liberto o mundo da escravidão. Eu não destruo o Sistema: ele simplesmente perde a razão de ser. Ontem eu fui pra vala. Hoje ainda está indefinido. Mas mesmo quando eu fracasso, sinto que em algum momento daquele dia eu fiz alguma pequena coisa que manteve a luz acesa. Às vezes eu quero que ela se apague logo. Outras vezes quero que ela queime tudo de uma vez. E o tempo todo me pergunto se o que estou fazendo é certo ou errado. Sem resposta. Ontem tive uma briga desgraçada com Deus, por causa disso. Essa briga pode me mandar pro inferno.

Desculpe-me, eu não tenho uma mensagem aqui. Esses são pensamentos que me vêm à mente o tempo todo e me sinto agora sozinho como jamais estive em toda minha vida. Estou na metade da minha vida, na metade de mais um dia e espero ter coragem para tornar-me uma lenda. Se a luz estiver ainda acesa no final, você, seja quem for, saberá...