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Arte por Douglas Vasconcelos |
AURA
Significado: Sopro
leve, perfume.
Guido
já não via a hora de chegar em casa.
Entrou
com tudo sem fechar a porta e pôs seu presente sobre a cômoda. Chegou bem perto
do vidro para ver melhor o que estava lá dentro. Um mini-furacão rodopiando
nervosamente, igualzinho aos que se vê na TV engolindo casas, carros e animais.
Só que pequeno. Pensou no que ouvira da menina que trombou nele com o cachorro
e o coração que já batia forte agora parecia com um o ribombar de inúmeros
trovões numa tempestade.
Desde
o momento em que recebera o Vórtice, apenas um rosto que lhe veio à mente. A
primeira pessoa a ser chamada deveria ser ela.
Tomou
o vidro em suas mãos e sentou-se na única poltrona que tinha depois de jogar
para o lado um monte de roupas que lá estavam. Com o vidro à altura dos olhos,
pensou fixou o pensamento.
Sentiu-se
envolvido pelo vento bravo do furacão, sem saber se havia encolhido ou se o
vórtice aumentara levando-o céu afora. Num minuto tudo escureceu e quando abriu
os olhos estava andando por uma estradinha estreita ladeada por grama que subia
uma colina de solo regular. Guido conhecia o lugar. Não estava em mapa algum.
Ele simplesmente o construíra. Um lugar alto e tranquilo para onde ia quando
tudo dava errado.
Seguiu
a estradinha até vê-la sentada na pedra em que sempre ficava a contemplar a
paisagem ao longe. Os cabelos loiros voavam numa delicada dança. Não era uma
imagem rara. Ele gostava de vê-la assim. Aquela era Aura de sua mente, aquela
que ele imaginava. Mas hoje ela seria apenas uma porta para a entrada da Aura
real. Aproximou-se dela, tocou-lhe os ombros com ambas as mãos numa massagem
suave. Ela sorriu ternamente e levantou a cabeça para olhá-lo com um belo
sorriso.
- Oi
Aura. – disse ele fazendo-lhe um carinho no rosto.
-
Oi, meu amor. – respondeu ela. – Olha como tá tudo lindo hoje.
Os
dois olharam juntos os vales e riachos brilhantes das paragens imaginárias, do
reino que a ele pertencia.
Guido
a fez levantar-se com um gesto carinhoso. Ela passou os braços em volta de seu
pescoço e aproximou os lábios dos seus. Mas antes que pudesse concluir o beijo
ele pronunciou o passe.
-
Adentre o vórtice.
No
mesmo instante, a sensação etérea que tinha ao tocá-la em seus pensamentos foi
substituída por um calor real de corpo. E ele, que sempre teve consciência de
que aquela que lhe encontrava era tão inventada quanto a paisagem à sua volta,
sentiu-a então verdadeiramente.
Ela
piscou várias vezes e afastou-se olhando ao redor, confusa. Finalmente pôs os
olhos sobre ele e fez uma expressão de estranhamento e antipatia.
- O
que eu tô fazendo aqui, lesado? – perguntou.
-
Bem-vinda, Aura. Você tá na minha mente.
Ela
andou pelo lugar. Inquieta, não viu sinal algum de civilização.
-
Mas que droga é essa? – perguntou nervosa – Essa é mais uma das tuas burradas,
é?
-
Que tal uma trégua, trombeta? Acho que não adianta gritar. Eu te trouxe aqui
sim, mas não sei quando ou como vamos sair. Então porque não relaxa?
- Só
podia ser coisa tua. – respondeu ela de braços cruzados, levemente conformada
com a situação. – O que eu vim fazer aqui?
Guido
estava em seu território. Lá fora ela dominava, podia chama-lo do insulto que
quisesse na frente dos outros colegas, humilhá-lo. Mas algo lhe dizia que Aura
estava entendendo a matéria que lhe cercava e ele se sentia completamente
seguro para fazer o que quisesse, embora não soubesse exatamente o quê.
-
Vamos dar um tempo nessas discussões da gente. – respondeu ele – Não estamos mais
no trabalho. Eu odeio aquele trabalho, por isso faço tudo errado. Queria te
mostrar umas coisas.
Ela
encolheu os ombros.
-
Que opção eu tenho? – disse ela.
Era
linda como um anjo. Por mais que ele a imaginasse em seu melhor momento, a Aura
real era muito melhor. Os dois começaram a caminhar pela estradinha descendo o
outro lado da colina. Enquanto andavam, Guido desfrutava do poder que agora
possuía. Era o senhor da situação e podia controlar tudo, exceto as vontades e
opiniões daquela que amava em segredo no mundo real. E aquela era a única coisa
que ele não queria mesmo controlar.
- Eu
ganhei esse dom, esse poder de trazer as pessoas pra dentro da minha cabeça. –
explicou.
- E
o que te fez pensar que eu estivesse interessada em saber o que você tem nessa
cabeça? – a voz dela era suave, mas ríspida. – Você é só um cara chato que vive
no mundo da lua. A gente trabalha junto há quanto tempo? Uns três anos? E nunca
concordamos em nada.
-
Foi também por isso que eu te trouxe. Talvez se você vir o que eu penso possa
me entender.
-
Isso é estranho demais. – declarou ela – Por que você quer se fazer entender
pra uma pessoa que você odeia e que também não gosta de você?
Teve
vontade de dizer tudo ali. Que a beijara várias vezes, que a amava tanto quanto
ninguém jamais seria capaz de fazê-lo. Mas em vez disso, preferiu começar pelo
começo.
-
Pare bem aqui. – pediu ele após andarem alguns passos – Feche e abra os olhos
uma só vez, bem rápido.
Aura
obedeceu. Com aquele movimento de olhos, viu-se em outro lugar. Era uma
biblioteca desengonçada. Uma construção completamente diferente de tudo o que
vira antes e lhe dava a impressão de ser uma colagem de vários ambientes.
-
Que lugar é esse?- indagou ela num misto de admiração e espanto.
- É
a minha biblioteca particular. Uma mistura de todas as bibliotecas nas quais
pisei em minha vida, mas sem repetir os livros. – respondeu Guido.
Não
havia ninguém lá além deles. Ela andou por vários ambientes, tocou nos livros e
maravilhou-se com a atmosfera de paz do lugar.
- É
bonito aqui, lesado. – disse – É esquisito, mas bonito.
- É
aqui que eu construo meu espírito. Perto dos livros que eu mais gosto. É aqui
que eu me inspiro. Não para criar as histórias, mas para lembrar que tantos
caras também criaram e mudaram coisas com elas. Grandes caras. O que eu mais
quero é ser um deles, sabe.
Aquilo
enterneceu Aura. Ela quase deixou escapar um sorriso. Corou e desviou dele o
olhar.
- E
aquela parte ali? – perguntou ela apontando para uma seção que continha apenas
uma estante com quatro prateleiras cheias de livros.
Guido
foi até lá e ela o seguiu. Ele puxou um livro azul com capa de couro e começou
a folheá-lo.
- Os
livros desta seção são meus favoritos. Durmo e acordo pensando neles. Veja. – e
entregou-a o volume.
Ela
observou que o livro tinha o nome dele impresso.
-
Foi você que escreveu esse livro? – perguntou com sincero entusiasmo.
Ele
fez que sim com a cabeça e olhou de volta para a estante. Aura pôs o que tinha
nas mãos de volta ao lugar e puxou outro e verificou o autor. Depois mais outro
e mais outro.
-
Incrível! Você escreveu todos esses livros!
- De
certa forma sim. Só que os escrevi no futuro. – explicou – Eu preciso desse
lugar para saber que irei conseguir. Quando as coisas estão difíceis e começo a
pensar que não vai dar certo, venho aqui, puxo um deles e leio. Eu me
reencontro na certeza de que sou capaz de cumprir com os meus anseios mais
profundos.
Aura
deu mais uma olhada ao redor. Já não parecia tão amarga. Aos poucos se deixava
conduzir por ele e estava cada vez mais à vontade.
Com
delicadeza tomou dela o livro e o recolocou. Pediu que ela mais uma vez
piscasse e encontraram-se numa simpática ruazinha de subúrbio, cheia de lindas
casas de muro baixo com jardins floridos e bem cuidados.
-
Que rua linda. – disse ela. – É de alguma lembrança sua?
-
Mais ou menos. – respondeu Guido – Quero que você conheça uma pessoa muito
especial pra mim. Esta rua é das lembranças dela. Pelo menos como eu imaginei
que fosse.
Ele
parou em uma das casas. Bateu palmas e um cachorrinho saltitante irrompeu porta
afora abanando o rabo entre os arbustos de roseiras.
-
Rabito!- saudou Guido – Onde tá a Tia Alice?
O
cãozinho latiu contente e Aura lhe fez um carinho. Eles entraram no jardim e
logo apareceu uma jovem senhora, muito simpática, com um avental da Galinha
Maggi e uma toalha de mão sobre o ombro.
-
Guidinho! – disse ela – Que bom que você veio hoje, filho. – e voltando-se para
Aura: - É ela a moça de quem você fala?
- É
sim, tia. – confirmou ele – Tem café e bolo hoje?
-
Claro, Guidinho, podem ficar à vontade.
Ficaram
lá a tarde toda. Com seu jeito adorável, Tia Alice contou a Aura sobre como
Guido cresceu praticamente sozinho, somente com seus livros e seus brinquedos
como companhia. Ela teve de cria-lo até os dez anos, pois os pais do menino
trabalhavam muito. Contou das peripécias dele e de como acharam Rabito numa
caixa perto do cemitério e o levaram para casa para curar as pulgas e as
feridas sem precisar de veterinário. Aura riu muito e achou delicioso o bolo de
chocolate de Tia Alice. Ela e Guido brincaram de bola com Rabito no jardim como
se fossem crianças.
-
Sua tia é muito legal. – disse Aura puxando a bolinha da boca de Rabito. – Por
que você só morou com ela até os dez anos?
- Porque
ela morreu. – respondeu Guido com toda a naturalidade.
- O
quê? – perguntou ela assustada.
-
Ela teve um ataque do coração. Minha mãe precisou largar o trabalho pra ficar
comigo. Minha mãe sempre se esforçou, mas nunca fui tão feliz quanto era com a
tia. Mas por favor, não mencione morte na frente dela. Quando se fala sobre
isso ela adoece e morre aqui nessa parte da minha mente e ressuscitá-la é
sempre muito difícil.
Guido
explicou que Rabito morrera pouco antes, atropelado por um motociclista bêbado
que subiu a calçada. A rua linda em que Tia Alice morava, bem como a casinha
eram as projeções que ele fazia das lembranças que Tia Alice relatava da
própria infância e da vontade dela de um dia poder morar novamente na rua em
que cresceu.
Na hora de despedir-se, Aura deu um abraço
caloroso em Tia Alice.
-
Adeus, tia. Nunca vou me esquecer da senhora, nem do bolo, nem deste lugar
maravilhoso. – nesse momento Rabito latiu a seus pés e ali ficou balançando a
cauda – Ah, nem de você, Rabito. – disse ela por fim fazendo festinha em seu
focinho.
- Eu
sei que você não vai mais poder voltar aqui, filha. – disse Tia Alice – Mas
daqui eu vigio e oro por você. Deus lhe abençoe.
Guido
beijou a tia e despediu-se de Rabito. Os dois desceram a rua e ao chegar na
primeira esquina ele pediu que parassem.
-
Então? O que achou? – perguntou Guido.
-
Nunca pensei que você tivesse tantas coisas boas nessa sua cabeçona, lesado. –
quando disse isso, corou e ficou visivelmente constrangida de ter deixado
escapar o pejorativo com o qual o tratava. Mas logo se recompôs e concluiu: -
Tô muito feliz de estar aqui. Feliz como há muito não me sentia.
-
Que bom, trombeta. A última parte do nosso passeio dependia disso.
Novamente
pediu que ela fechasse e abrisse os olhos. Viram-se então no interior de um
belíssimo palácio, em um salão de piso tão lustroso que os refletia
parcialmente. A arquitetura do lugar permitia que a luz do sol invadisse o
salão banhando de brilho os lustres de cristal e os adornos dourados que
arabescavam o teto, as paredes e os rodapés.
-
Meu Deus...- murmurou ela – Onde a gente tá agora?
-
Nesse momento, onde a gente tá não importa. Inventei este ambiente só por causa
da importância que tem a pessoa com quem você vai conversar agora. Ah! Aí vem
ela. Tenho que deixa-las.
Guido
saiu e segundos depois Aura viu entrar uma figura belíssima. Uma moça loira
trajando um vestido longo enfeitado com pequenos diamantes que brilhavam sob a
luz da manhã e, embora fosse um vestido pomposo, nela caía com perfeita
simplicidade.
Era
uma criatura iluminada cuja presença lhe trazia enorme paz, de um perfume tão
delicado que lhe animava a alma e fazia sentir que nada de ruim jamais poderia acontecer.
A moça se aproximou dela atravessando o salão sem que seus passos ecoassem ao
tocar o chão. Aura viu então que a linda aparição era ela mesma e uma profunda
emoção lhe tomou.
-
Meu Deus... - murmurou Aura levando as mãos à boca.
-
Olá, Aura. – saudou a moça – Não esperava que alguém lhe imaginasse assim, não
é?
Os
olhos de Aura encheram-se de lágrimas.
- Na
maior parte do tempo é assim que ele te vê. – continuou seu outro eu - Ele
escolheu o que havia de melhor em seu pensamento e trouxe pra este lugar.
-
Mas isso é lindo demais. – disse Aura – É tudo muito perfeito. Ele me vê como
um tipo de princesa imaculada, inocente e gentil. E eu nunca demonstrei ser
isso perto dele. Eu sou rude, às vezes até cruel...
-
Ele sabe disso. – a outra interrompeu - E não pretende se enganar ou lhe
enganar. O objetivo de você estar aqui é apenas o de ter a certeza de que pelo
menos uma pessoa no mundo consegue enxergar você exatamente como você é por
dentro.
Ao
ouvir isso, Aura chorou sem medo, como alguém que finalmente recebe um presente
esperado por anos. Passou ainda mais um tempo junto de sua outra parte, passeou
pelo palácio, perguntou coisas. Por fim, chegaram a uma enorme porta dupla
entalhada em mogno que parecia ser a saída do palácio.
-
Este é o fim da sua viagem, Aura. – disse a outra.
- Ele
está me ouvindo agora?.
- De
certa forma, ele é tudo ao seu redor. Desde a carne que você está vendo em mim
até o concreto das paredes. Até minhas falas são ele.
Aura
respirou fundo antes de se despedir daquele reino de coisas boas por onde ela
caminhava soberana.
- Eu
só queria que ele soubesse o quanto eu tenho vontade de ficar aqui pra sempre.
-
Mas você estará sempre aqui, Aura. Quando se entra na vida de alguém, deixa uma
marca indelével na forma de um universo inteiro que se desenha ao redor do que
você representa para ela. Há tantos universos em sua mente quanto há pessoas
que lhe tocam no coração. Esses universos podem até ser esquecíveis, mas
certamente são indestrutíveis.
Aura
abriu a porta e saiu para um imenso jardim. Mas antes de seguir, deteve-se
indecisa e olhou para seu outro eu.
-
Acho que vou me apaixonar. – disse ela.
A
outra sorriu satisfeita. Aura continuou o caminho jardim afora e foi engolida
por uma luz que aumentava à medida que avançava.
***
Guido
acordou no dia seguinte. Dormira em sua poltrona com tudo em volta revirado,
esperando a prometida faxina de semanas. O Vórtice revolto dançava aprisionado
no vidrinho que ainda jazia em seu colo. Olhou no relógio do celular e viu que
estava atrasado para seu detestável trabalho. Mal teve tempo de tomar banho,
arrumar-se e engolir um pedaço de pão dormido com manteiga, teve de sair
correndo pegar um ônibus lotado.
Já
estava no auge do estresse quando chegou e bateu seu ponto. Com certeza teria
uma hora de salário descontada no mês seguinte. De novo.
Sentou-se
à mesa de seu cubículo e ligou o computador. O sangue fervia de raiva de sua
rotina. Esperava ver o chefe apontar ali a qualquer momento para reclamar de
tudo e a única coisa que queria era relembrar os momentos em que esteve com
Aura dentro de sua mente. “Quisera que fosse real”, pensava.
Sentiu
uma mão dando-lhes tapinhas no ombro. Desta vez o chefe iria ouvir. Não se
importava mais se fosse demitido, que se danasse o emprego, não iria suportar
outro sermão. Virou-se com tudo, pronto para gritar, mas em vez do chefe, quem
estava ali diante dele era Aura.
-
Trombeta? – disse surpreso.
-
Atrasado de novo, hein, lesado? – disse ela em tom sério.
O
coração de Guido disparou feito o motor de uma motocicleta. Aura retirou-se
ainda séria. Antes de entrar no corredor, porém, ela virou para ele que a
assistia indo embora, e abriu um sorriso cúmplice.
-
Diga à Tia Alice que quero a receita do bolo. – disse ela antes de piscar o
olho esquerdo para ele.
Guido
recostou-se em sua cadeira sem fôlego. O motor da motocicleta passou para a
rotação máxima. Finalmente algo de extraordinário aconteceu.
GUIDO
Significado: florestas, bosques. Criança da floresta, pessoa que, ajudada pela intuição investe o seu tempo e a sua energia em atividades que lhe dão um excelente retorno. No amor tarda a amadurecer e procura alguém que lhe dê tudo sem pedir nada em troca, pois tem medo de abrir mão da sua liberdade.