terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

EU SOU O VAMPIRO...



I kneel and wait in the silence/ As one by one people slip away/ Into the night.”- THE HOLY HOUR, The Cure.


Quando eu era pequeno, costumava ficar acordado até muito tarde. No meio da madrugada eu abria as persianas e observava a rua.
Aparentemente ela dormia junto com os cidadãos. Mas um olhar mais cuidadoso e um ouvido atento descobriam, sob o ressonar da noite, a vida que se esgueira pelos elementos da paisagem. Eu não sei exatamente o que eu esperava encontrar nessa paisagem. O grey explorando nossa Terra. O autor do crime perfeito. Ou simplesmente ver a noite transformar-se em dia num sutil espetáculo de alquimia e ilusão.

Não raro eu me assustava com a vida que a noite escondia. Começava minha atividade como o observador sagaz do impossível. Mas minha coragem se esvaía ao fitar o movimento soturno das árvores, ao ouvir passos que se abreviavam na esquina e nunca revelavam o autor e vozes sussurrantes de amantes que eu não sabia se eram deste mundo ou do além. E tinha sempre em algum momento a sensação que de algum outro esconderijo, olhos mais perspicazes que os meus me adivinhavam. Talvez os do terrível vampiro dos meus pesadelos.

Ao longo dos anos, fui aprimorando meu olhar, resistindo ao medo das ocorrências esdrúxulas da madrugada. Passei a sair do esconderijo. Tornei-me, por tempos, personagem do show. Fui o dono dos passos misteriosos uma vez. Em outra eu fui o amante. E numa outra ocasião a voz sussurrante foi a minha.

Hoje, enquanto minha filha e minha esposa dormem, eu observo tudo de um lugar mais alto.

Eu contemplo telhados tristes de décadas áureas e admiro a chuva que os lava como lágrimas de mãe. Ao longe os carros deixam uma alma sonora. Eu as guardo uma a uma. Mais próximo, um chuveiro lava o corpo dele. Depois ela vai. O amor se consumou. Mais aqui ao lado um gato franzino desliza pelos muros em busca de hor d’oeuvres em seu banquete inexistente. E nas frestas das janelas, olhos iluminados como pirilampos correm de um lado a outro como outrora eu fiz. Eu os adivinho.

Minha própria sombra cresceu sobre o bairro de meus antepassados. Eu me apossei do olvidado e prostrei-me diante dos detalhes. Esta noite eu perscruto o perscrutador e o absorvo. Esta noite eu sou o vampiro...


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